Três normas sobre doações deixam abertura na lei para interpretações sobre o que é bem público e o que é pessoal, dizem especialistas

Lei
Foto: Divulgação / Ministério da Fazenda

As normas brasileiras que regem os presentes dados a autoridades públicas deixam margem para interpretações diversas sobre o conceito de “patrimônio pessoal”, dizem especialistas ouvidos pelo R7. Na semana passada, Geraldo Alckmin (PSB), vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, e Fernando Haddad, ministro da Fazenda, devolveram duas estátuas recebidas do governo saudita — uma de onça e a outra de camelo.

O governo federal informou à Embaixada da Arábia Saudita que está disposto a receber os presentes novamente, desde que os itens sejam encaminhados conforme manda a legislação do Brasil.

A gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tentou trazer ilegalmente para o Brasil colar, anel, relógio e um par de brincos de diamantes avaliados inicialmente em R$ 16,5 milhões — e depois reavaliados pela Polícia Federal em R$ 5,1 milhões. As joias eram presentes do regime saudita para o então presidente e a primeira-dama Michelle Bolsonaro e foram apreendidas no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Elas estavam na mochila de um militar, assessor do então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, que viajou para o Oriente Médio em outubro de 2021.

Na prática, todos os presentes recebidos por presidentes da República devem ser incorporados ao patrimônio público brasileiro, porque os itens são, em regra, endereçados à nação brasileira, e não à pessoa física do presidente. “Todavia, tal prática não tem sido observada, gerando questionamentos judiciais e determinações de devolução de presentes e incorporação deles ao patrimônio da União”, aponta o advogado Antonio Carlos de Freitas Júnior, especialista em direito constitucional e eleitoral.

Legislação

A única lei específica sobre o tema é de 1991 e trata da preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República. O texto não tem como objeto os itens em si, mas a memória do país — o que deixa brechas para interpretações diversas. A lei não chega a citar presentes em nenhum dos artigos.

Em 2002, essa lei foi regulamentada por meio de um decreto presidencial. Foi a primeira vez que a legislação tratou do recebimento de presentes por chefes do Executivo federal. O regulamento considerou de propriedade da União os itens “bibliográficos ou museológicos” produzidos em cerimônias de troca de presentes, visitas oficiais ou viagens de Estado do presidente da República ao exterior e nas visitas oficiais de chefes de Estado e de governo estrangeiros ao Brasil.

“Assim, era entendido pelos presidentes que apenas os presentes recebidos nessas ocasiões eram públicos, enquanto os itens que não fossem ‘bibliográficos nem museológicos’ ou que fossem recebidos em outras ocasiões seriam patrimônio privado deles”, acrescenta Freitas.

Em 2016, o Tribunal de Contas da União (TCU) publicou acórdão para determinar que todos os presentes e documentos recebidos pelos presidentes, independentemente da ocasião, devem ser incorporados ao patrimônio público, excluídos os itens de natureza “personalíssima”, como medalhas personalizadas, ou de consumo direto, como bonés, camisetas e gravatas.

De acordo com o advogado, quaisquer itens podem ser recebidos. “Não é possível regulamentar a vontade e as ações daqueles que entregam presentes. O que diferencia cada presente recebido é a destinação”, explica.

“Qualquer servidor público — do mais baixo ao presidente da República — é proibido de receber presentes de pessoas que tenham interesse em decisões, ou seja, os destinatárias dos atos administrativos”, afirma o advogado e professor de direito João Pedro Mello.

Por outro lado, os presentes diplomáticos, que não podem ser recusados, é que são divididos em duas categorias: os personalíssimos e os que não se enquadram nessa categoria. “O TCU tem entendido que os objetos recebidos nessas circunstâncias diplomáticas pertencem à União, não à pessoa da autoridade — a não ser que o presente seja considerado de caráter personalíssimo. E esse conceito de caráter personalíssimo é um conceito aberto, que precisa ser avaliado caso a caso”, argumenta.

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Fonte : Portal Correio

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