“Quem viver verá.” Este dito popular nunca se fez tão presente como agora, para a geração que trabalha a questão racial no Brasil, há uma, duas, três ou mais décadas. Ainda é nítido em minha memória as diversas discussões que tive que enfrentar, tentando convencer os tomadores de decisões do mercado publicitário, em geral, que ignorar quase 60% da população brasileira, privilegiando apenas uma parcela da população, era burrice e anticomercial, uma estratégia péssima para os negócios.

Em 2007, quando assumi pela primeira vez como diretor e não o CEO da revista RAÇA Brasil, lembro-me das minhas peregrinações nas agências de propaganda, tentando convencer um mercado cético com relação ao poder de consumo da comunidade negra e, portanto, olhava esse consumidor com desconfiança e o excluía das propagandas, das produções audiovisuais, de qualquer medida que pudesse colocar negros e negras na posição de consumidores.

Somente neste século 21 começaram pesquisas mais regulares focadas especificamente nesta camada da população. Isso só se deu por conta das políticas públicas de distribuição de renda e um maior número de negros e negras entrando nas universidades, por conta de programas educacionais como Prouni, Universidade para Todos, Fies, cotas raciais nas universidades e outras oportunidades negada por séculos neste país que ajudamos a construir.

O primeiro estudo que levou em consideração todos esses fatores econômicos e educacionais foi encomendado pelo fundo Baobá para o Data Popular, instituto especializado na ascensão das classes C e D, mostrando, em 2011, que negros naquele período movimentavam R$ 673 bilhões no Brasil e que havia uma movimentação considerável na classe C, onde negros e pardos passaram de 34%, em 2004, para 45%, em 2009, ou seja, ao mesmo tempo que crescemos em números nas universidades, crescemos também no poder de consumo.

Quase dez anos após aquela pesquisa, realizada pelo Data Popular, outro estudo, realizado pela Nielsen, revelou características sofisticadas desses consumidores. O estudo intitulado de Afroconsumo mostrou que 67,6% da população preta e parda tinha o hábito de fazer compras on-line. O estudo revelou também que 73,2% desses consumidores possuíam atividade remunerada.

Mas o que indicavam esses números, tendências e indicadores com relação ao mundo do consumo e da publicidade, envolvendo negros e negras, revelou-se de forma incontestável no desempenho da corajosa produção global de Vai na Fé — primeira novela que reflete em seu elenco a realidade da população do país, de maioria negra e periférica, com os principais protagonistas. Todos oriundos da classe C, a maioria negros e negras em suma, um retrato fiel do Brasil contemporâneo. E o resultado não poderia ser outro: um recorde como o maior sucesso comercial das novelas que não era alcançado, desde 2016.

Os números revelados esta semana pela emissora mostraram que, mais que um elenco de maioria negra, a obra criou uma conexão direta com linguagens, assuntos e manifestações culturais de forte presença negra da atualidade, como funk, gospel e outras temáticas típicas da juventude negra.

O lado positivo é o de que, mais que uma onda, finalmente o mercado publicitário, e audiovisual se deu conta de que 56% da população do país, ou seja, mais da metade da população, são consumidores e não podem ser ignorados, ou melhor, discriminados de forma negativa, como vinha acontecendo por décadas.

O triste foi refletir que precisou de tantos anos, tanta saliva, tanto ativismo e até um George Floyd, para que, só agora, em pleno seculo 21, um setor tão estratégico para a educação, para a cultura, formação, autoestima e luta antirracista como a mídia, pudesse enxergar o óbvio: a existência de negros e negras no Brasil.

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Fonte : CNN BRASIL

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