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Na beirada dos anos 1990, a então recém-criada Conrad publicou Comic Book — O Novo Quadrinho Norte-Americano, uma antologia com os nomes de destaque no lado underground das HQs da terra do Tio Sam. Nomes como os veteranos irmãos Hernandez (da série Love and Rockets) dividiram espaço com autores mais recentes (e inéditos no Brasil), como Debbie Drechsler, Dame Darcy, Dan Clowes, Lloyd Dangle, Peter Bagge, Richard Sala, Joe Sacco e Adrian Tomine.

Alguns desses deram certo (há outras obras do jornalismo em quadrinhos de Sacco e dos dramas lynchianos de Clowes, por exemplo) e outros só ficaram nas poucas páginas dessa pequena pérola de coletânea (publiquem Debbie Drechsler, por favor).

Na época, o que me chamou a atenção foi a última história, “Dylan & Donovan”, um recorte da vida de duas adolescentes. Não havia explosões, cenas de ação mirabolantes, diagramação ousada ou desenhos impactantes. Havia apenas fios de cotidiano em uma tapeçaria nada sofisticada. E foi isso que faz as HQs de Tomine as mais interessantes.

Lançado recentemente pela Editora Nemo, Pontos Fracos (tradução sofrível para o original, Shortcomings) navega por relacionamentos à deriva, com personagens imperfeitos a bordo e na mesmice interessante que Adrian Tomine conduz.

Logo de cara, o quadrinista não faz questão de empatia com o protagonista, Ben Tanaka, um gerente de cinema em Berkeley, na Califórnia, que precisa de terapia urgente. Além de patético, soberbo e egoísta, ele lida com um relacionamento que está à beira do rompimento com Miko Hayashi.

Um personagem antipático não quer dizer que não seja notável, já que ele complica a sua vida (e a dos outros) pelas suas falhas, nesse recorte que foi delineado com uma tesoura “cega”, mas que é enriquecido pela habilidade de Tomine de criar diálogos e mergulhar naqueles momentos profundamente, instigando o próprio leitor a ter a curiosidade de compreender por que ele é assim.

Além disso, é colocado na narrativa um tema complexo: a experiência asiático-americana que o protagonista traz consigo. Ben é obcecado não só pelas suas frustrações, mas também pela atração por mulheres brancas. Nota-se que ele é desconectado da sua herança nipônica, ao mesmo tempo em que se sente incomodado por estar presente no seu cotidiano (inclusive quando ele mesmo é o único que a enxerga). Um quebra-cabeças que não encaixa: de um lado a peça asiática, do outro, a ocidental.

Tudo isso piora quando Miko vai fazer um estágio de quatro meses em Nova York, resultando em mais conflitos, inseguranças e autossabotagens.

De um forma canhestra, a única pessoa com quem Ben consegue conviver — mesmo sem ser “pacificamente” — é a sua melhor amiga, Alice, uma universitária coreana que é lésbica. Algumas situações com a personagem servem para o autor alfinetar a sociedade e o conservadorismo familiar.

Pontos Fracos também resultou em um longa-metragem, Caminhos Tortos (2023), atualmente disponível na plataforma de streaming Max. Dirigido por Randall Park e adaptado pelo próprio Adrian Tomine, o Ben (vivido por Justin H. Min) é mais simpático, apesar de ainda carregar todos os defeitos autodestrutivos oriundos do gibi.

Originalmente publicado em capítulos na série Optic Nerve, há duas décadas, um acerto do filme é trazer o recorte na vida desses personagens para os dias de hoje, com a internet cada vez mais presente no cotidiano.

Também é notado um otimismo de Tomine com a idade, já que ele oferece um final bem mais perto do “feliz”, inclusive um arremate com a cena inicial. Bem menos amargo que a HQ, mas não menos “realista” pela fé que o quadrinista carrega em uma possível mudança de vida do seu protagonista.

Mesmo assim, ainda um recorte.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 18 de setembro de 2024.


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A União

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